Na continuação do acto II, eis hoje as cenas XI e XII, em que o auto de Gil Vicente começa a ser representado na corte de D. Manuel I.
Cena XI (Gil Vicente, Atores, Atrizes e Pêro Sáfio)
(O auto inicia-se, enquanto, no camarim, se dão os últimos arranjos e fazem os últimos ensaios.)
Gil Vicente – Bem, bem. Júpiter? Onde anda Júpiter? Ah! Sou eu mesmo. (Em atitude, como quem entra em cena) Reúnam-se todos os atores! Vamos! Vamos! Já tarda!
Primeiro ator – Aqui estou.
Segundo ator – E eu!
Terceiro ator – Pronto.
Primeira atriz – Eis-me!
Segunda atriz – Estou pronta!
Gil Vicente – Excelente! Belas, galantes estais. Que viva toda a corte celestial! Como vêm guapos!
(Aparte, no decorrer da peça, contracenam Gil Vicente e Pêro Sáfio.)
Pêro (entrando em cena e declamando) –
Humilho-me a vós, sagrado
Júpiter. Que me mandais?
Gil Vicente (do mesmo modo) –
Vós sejais mui bem chegado
A estas Cortes Reais.
Manda El-Rei de Portugal,
Senhor do mar Oceano
Sua filha natural
Per conjunção divinal
Pelo mar Meio-Terrano.
Cena XII (Bernardim, Paula Vicente, Ator e Pêro Sáfio)
(voltando de novo aos camarins)
Bernardim (tirando a máscara) – Incrível! Incrível o que se está passando em mim. Eu, nos passos da Ribeira, com estes trajos! Eu, diante toda a corte, representando um auto de Gil Vicente! Eu…
Paula – Se vos arrependeis, ainda é tempo!
Bernardim – Nunca! Se de outro modo a não posso ver! Oh! querida Paula, tu és de certo a minha providência. Bem acertaram o nome esta noite. Que seria de mim sem a tua proteção!
Paula – O mesmo que com ela. Amanhã parte a frota ao romper da alva. Que fareis?
Bernardim – Que me importa amanhã? Eu vivo para hoje, vivo para esta hora. Que se me dá a mim que acabe o mundo depois?
Paula (aparte) – Muito a ama!
(Pêro, apressado, interrompe o diálogo.)
Pêro – Providência, Providência? Paula! Meus pecados! Ainda de conversa!
(Bernardim permanece no camarim, passeando, lendo o papel que tem na mão.)
Bernardim – E eu hei de dizer isto! – Fazer estes trejeitos… Eu, diante de tanta gente! E para estudar isto de cor? Impossível! Quem me deu cabeça agora?
Ator – Senhora moura, senhora moura Tais! Depressa, depressa, que estais a entrar por instantes.
Bernardim – Vamos! Ânimo! E suceda o que suceder. Avante com a empresa.
[Em cima: Estátua representando Júpiter.]